Leonardo Da Vinci e O Poderoso Chefão: A Traição

Cena do filme “O Poderoso Chefão”
1972
Diretor: Francis Ford Coppola

Vamos imaginar uma cena de filme?

Imaginem um lugar remoto, onde alguns homens estão em uma reunião. Se você quiser, podemos acrescentar uns raios e trovões, uma tempestade ameaçadora se aproxima. Os homens estão reunidos em uma sala, em torno de uma mesa. O clima é tenso, o ar está pesado, a tempestade se aproxima. Os homens aguardam. Após longos minutos de silêncio o chefe deles fala: “Algum de vocês irá me trair nas próximas horas”. O estrondo de um trovão abala as paredes da sala. Os homens saem do silêncio e começam a falar alto e fazer perguntas, começam a apontar possíveis culpados, eles se agitam em torno da mesa. E no centro da mesa o chefe continua plácido, e em silêncio.

“Corta”, diz o diretor.

Seria essa cena inspirada em filmes de gângsteres? Seria um filme do diretor Alfred Hitchcock?  - Não. - Essa cena foi inspirada na Bíblia, na maior traição de todos os tempos, a traição de Judas Iscariotes!

Eu tenho certeza que caso Leonardo da Vinci vivesse nos tempos modernos, ele teria sido um grande diretor de cinema e faria uma cena bem melhor do que essa que descrevi acima. Porém Da Vinci realizou uma pintura sobre o tema da Traição, que se tornou uma das obras mais célebres do mundo e tem tanta ação e drama quanto em um filme de Hitchcock. Estou falando é claro de “A Última Ceia”.

Leonardo da Vinci
A Última Ceia
Convento Santa Maria delle Grazie – Milão

Da Vinci era um pesquisador incansável, cada uma de suas pinturas é fruto de intensa pesquisa e são obras que testemunham a grandeza da mente desse artista. “A Última Ceia” é resultado de um longo processo, testemunhas da época nos contam que enquanto Leonardo fazia essa pintura mural, ele passava horas somente observando antes de acrescentar algum detalhe. O resultado desse laborioso processo mental é uma hoje uma das imagens mais emblemáticas do mundo ocidental, sendo copiada à exaustão. E assim como a Monalisa, essa imagem nos parece tão familiar, que nos esquecemos de parar e realmente vê-la.

Essa pintura mural foi realizada para o Refeitório do Mosteiro de Santa Maria delle Grazie em Milão entre 1494 e 1498. Leonardo construiu a composição de maneira a criar a ilusão de que a sala “continuava” na pintura. O refeitório é uma sala longa e estreita, com um teto alto, trabalhado em arcos, então Da Vinci cria em sua pintura um espaço similar para abrigar seus personagens. A sala onde estão Jesus e os Apóstolos, também é longa, estreita e com o teto elevado, e ao fundo da pintura vemos duas janelas e uma porta que se abrem para a paisagem.



Até aqui, tudo bem. Leonardo foi inventivo no uso da perspectiva para sugerir a continuidade do espaço real, ele domina a técnica da perspectiva matemática, mas “só” isso não faz de ninguém um gênio, correto?

Correto. Vamos continuar então.

Eu comentei que Leonardo dominava a perspectiva matemática, não é? Pois então, como todo gênio, ele não iria se contentar em apenas utilizá-la à perfeição. Ele brinca com ela. Observem o teto. Esse teto tão habilmente desenhado em perspectiva. Mas olhem só, esse teto, ele termina abruptamente antes de chegar a “cobrir” as figuras. Ele é cortado pelo enquadramento superior da pintura. Ora, ora... Seria um capricho de parte de Da Vinci?
E essa mesa? Vamos observá-la de perto. Ela é comprida, tão comprida que se notarmos bem, ela é maior do que a sala! E tem mais, além de ser comprida demais, ela é estreita!






Mas por que afinal da Vinci fez essas escolhas?

Observem os personagens. Observem como eles são o foco da pintura. Quando Leonardo decide “cortar” o teto, quando ele cria uma mesa que não corresponde ao tamanho do espaço, ele quer nos dizer algo. Ele quer que os personagens sejam o centro da pintura. Quando ele “termina” o teto antes de cobrir os personagens, ele cria um espaço entre a sala da pintura e a sala real. Dessa maneira ele acentua o enquadramento fechado centrado nos personagens. Quando ele altera o tamanho da mesa, ele consegue posicionar todos os 13 personagens de maneira visível aos espectadores, para que os personagens não se “percam” atrás do grande volume de uma mesa perfeitamente construída sobre as regras da perspectiva.

Para termos uma idéia de como esses pequenos detalhes fazem uma revolução, basta vermos a “Última Ceia” do grande pintor Domenico Ghirlandaio. Uma grande obra, sem dúvida. As figuras são belamente construídas e variadas, o ambiente obedece às regras matemáticas, os detalhes são ricos e criam uma composição agradável e bela. Porém, notem como as figuras perdem em dramaticidade quando estão “bem” enquadradas no ambiente.

Domenico Ghirlandaio
A Última Ceia
1480
Leonardo queria que sua obra refletisse toda a dramaticidade do momento da revelação de Jesus durante o episódio bíblico da Última Ceia. Como sabemos, é durante este episódio que Cristo revela: “Em verdade vos digo que um dentre vós me trairá”. Os apóstolos são pegos de surpresa. Eles gesticulam e se agitam. Para intensificar o drama Da Vinci centraliza a figura de Jesus, e o enquadra pela luz da porta aberta ao fundo. Logo acima da porta vemos um frontão semicircular que acentua a figura de Cristo.



Leonardo escolheu não o momento da revelação, mas o momento que segue. Cristo placidamente em silêncio observa o tumulto que suas palavras causaram nos Apóstolos. Da Vinci organiza os Apóstolos em quatro grupos de três personagens. Cada grupo tem movimentos variados e atitudes diversas em reação às palavras de Cristo. Os grupos posicionados nos cantos são mais calmos, e o movimento vai crescendo até os gestos mais expressivos dos grupos que estão mais próximos ao centro, ao lado de Cristo. Observem o uso das tapeçarias do fundo, as linhas verticais dessas acentuam os movimentos divergentes das figuras. Imaginem que se Leonardo tivesse escolhido uma tapeçaria única, o fundo dos personagens seria uniforme, mas dessa forma, com quatro peças de cada lado, ele consegue as linhas verticais que fazem contraste com as figuras.

 

 


Se observarmos novamente a pintura de Ghirlandaio, veremos que tradicionalmente os pintores colocavam Judas do outro lado da mesa, para acentuar a traição. Porém Leonardo inova, colocando Judas do mesmo lado que os outros personagens. Mas como então Leonardo constrói a figura de Judas para diferenciá-lo dos outros? Bem, enquanto os Apóstolos se agitam em protesto, São Pedro empurra levemente Judas para poder se aproximar de São João. Judas dessa maneira é separado do grupo. Notem a pequena bolsa com as moedas de prata, recompensa pela traição, que ele segura avidamente.




Mas o golpe de mestre de Leonardo consiste no fato de que assim como o espaço da pintura simula a continuação do espaço real, a fonte de iluminação da pintura também é baseada na janela do refeitório, que fica no alto e a esquerda da pintura. Notem como todo o lado direito da pintura é mais iluminado que a parte esquerda. Observem os meios-tons que usa Leonardo.




Agora observem como Judas está posicionado de maneira a dar as costas para a Luz. Judas é o único que tem o rosto escondido pelas sombras. Leonardo através de uma escolha aparentemente simples, sobre onde posicionar a fonte de iluminação da pintura, consegue traduzir o teor simbólico da traição. E é ali, retraído nas sombras, que Leonardo Da Vinci escolhe mostrar o maior traidor da cristandade que já existiu.


Leonardo Da Vinci
A Última Ceia
1495/1498
Convento Santa Maria delle Grazie – Milão
Pintura mural (Óleo e têmpera) – 4,60m x 8,80m 

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