Edouard Manet e a busca pela Verdade.


Por séculos na História da Pintura os artistas buscavam a imitação perfeita da natureza, e aqueles artistas que conseguiram esse feito foram celebrados por seus contemporâneos. Porém no meio do século XIX, um certo ar de estagnação pairava sobre a Arte. A Pintura Acadêmica repetia as mesmas fórmulas plásticas, buscando os mesmos efeitos, abordando os mesmos temas clássicos. Foi nessa época que o pintor Edouard Manet tomou um caminho próprio, buscando novos meios plásticos e novos temas. Dessa busca surgiram obras que chocaram a sociedade da época e revolucionaram a História da Pintura.

Edouard Manet

Manet teve uma formação clássica, estudou por seis anos no atelier de um célebre pintor francês, e passava horas no Museu do Louvre copiando os mestres da pintura, em especial o pintor Ticiano. Porém Manet era um artista de seu próprio tempo, e apesar de ele reconhecer a genialidade dos mestres do passado, o mundo moderno no qual vivia o inspirava a criar uma nova pintura. Nessa época o plano urbano de Paris estava sendo totalmente recriado, a modernidade chegava a passos rápidos, porém a estrutura da sociedade continuava com seus ares de aristocracia e bons costumes. Então, como um artista poderia se contentar com as formas do passado, quando via ao seu redor tamanha transformação? Manet certamente não se conformou as regras existentes.

Em 1863 ele cria uma obra que choca toda a sociedade parisiense. Essa obra não foi aceita no renomado e tradicional “Salão dos Artistas”, e foi então exposta em uma amostra à parte, no “Salão dos Recusados”. Lá foi alvo de incontáveis críticas e criou escândalo.  A obra no caso, era “Le Déjeuner sur l’Herbe”, ou em português: “O almoço sobre a relva”.

Edouard Manet
Le déjeuner sur l’herbe
© RMN – Grand Palais (Musée D’Orsay) / Hervé Lewandowski

Certamente para nossos olhares modernos, essa obra não nos choca mais, porém em 1863 as pessoas não conseguiam compreender como alguém poderia “pintar tão mal” e ainda escolher um tema vulgar, com essa modelo nua que olha diretamente o espectador, sem nenhum pudor”.  Que cena mais estranha e desconexa! Dois homens vestidos e essa mulher nua, e no fundo outra mulher que se banha no riacho! A crítica e o público ficaram estarrecidos com tamanha falta de talento e falta de boa moral!

Mas afinal, o que buscou Manet com essa obra?

Bom, para começar ele tirou a inspiração de dois grandes mestres do passado. Como inspiração de tema ele usou “Concerto Campestre” de Ticiano, uma alegoria da Poesia. Já a disposição do grupo foi inspirada em um detalhe da obra de Rafael, “O Julgamento de Paris”. (Esta obra de Rafael foi perdida, porém graças a cópia do gravurista Marc Antoine Raimondi, podemos imaginar como ela seria.)

Ticiano
Concerto Campestre
1509
© 2007 Musée du Louvre 

Marc Antoine Raimondi baseado em cópia de Rafael
O Julgamento de Paris
1514-1518
©Petit Palais – Musée des beaux arts de la ville de Paris/ Roger-Viollet

Manet confronta o espectador com o nu feminino, pois apesar de esse tema ter sido usado por séculos, em temas mitólogos com nus idealizados (como no quadro de Ticiano), Manet aqui pinta uma mulher nua, sem recorrer à idealização da perfeição. O que vemos, é uma mulher real. Uma mulher real que olha diretamente o espectador. Manet assume o nu pelo que ele é. Sem véus mitológicos, o pintor rejeita a hipocrisia de seu tempo, que se deleitava nos Nus Mitológicos, para fazê-la assumir, que uma deusa nua, é nada mais nada menos do que uma mulher nua. 

Manet rejeita também a representação clássica da pintura, de simulação do real. Ele é um dos primeiros pintores a questionar os preceitos fundamentais da representação pictórica. Por exemplo, um elemento chave na pintura clássica é a construção do volume dos corpos e dos objetos. Para isso os pintores usavam o chiaroscuro, uma variação de tonalidades que cria o efeito da luz incidindo nos corpos, e logo, cria a ilusão de volume. Porém Manet abandona esse elemento básico de ilusão e utiliza no lugar desse degradê minucioso, fortes contrastes entre luz e sombra.  Observem como os personagens não parecem estar perfeitamente integrados á paisagem, algo dissona da perfeição acadêmica.

Detalhe obra de Ticiano

Detalhe obra de Manet


Observem que Manet criou o ambiente em uma sucessão de espaços mais, ou menos iluminados. Os galhos das árvores filtram a luz em maior ou menor medida, notem como existe uma progressão não linear da iluminação, como em um bosque real, e dessa maneira temos a sensação que a composição torna-se muito mais verdadeira.



Notem o uso do pincel, que é rápido, carregado de tinta e livre, já que ele não buscava mais a simulação de uma realidade perfeitamente construída. Observem o detalhe dos galhos no canto superior direito que são construídos com toques rápidos e curtos de pincel, o que cria a impressão de movimento dos galhos.



Manet buscou representar a incidência da luz e o efeito que ela tem nas cores e na nossa percepção de profundidade. Ele sabia que o olhar humano focaliza um objeto de cada vez, pois nós não vemos em uma totalidade nítida. É claro, nós sabemos que o restante da imagem está lá, mas não a vemos.  O mesmo serve para as cores. Nós sabemos que tal objeto é de determinada cor, porém a incidência da luz, a formação das sombras, a proximidade com outros objetos de outras cores, criam reflexos e matizes que não são feitos de cores puras.



O riacho nos oferece um exemplo preciso do uso das cores na obra, a transparência da água é criada pela justaposição dos verdes dos galhos das árvores e da grama, do marrom do tronco das árvores, e do azul que reflete o céu.

Manet não desenvolve aqui a ilusão perfeitamente construída do real, mas a sensação visual do real.  A sensação pura, ainda não elaborada pelo intelecto, aquela experiência autêntica, não influenciada por convenções de como se deveria pintar. E o resultado é que quando estamos frente a frente com essa obra de grande formato (2,07 x 2,65 m.), temos uma impressão muito mais forte de realidade, de que um bosque nos espera ali, depois da moldura.

Manet sempre afirmava que um artista deveria ser de seu próprio tempo. Ele não tomou como certas as “regras da pintura”, ele buscou a verdade acima de tudo. A verdade sobre em que consiste uma pintura, a verdade sobre quais temas deveriam ser abordados. A verdade sobre o que define um artista. O pintor francês Henri Matisse disse: “O esforço para enxergar as coisas sem distorção, exige coragem. E essa coragem é essencial para olhar tudo, como se fosse a primeira vez.” - Creio que Manet foi um dos artistas mais corajosos que já existiram.

Edouard Manet
Le déjeuner sur l’herbe
1863
Museu D’Orsay – Paris
Óleo sobre tela – 2,07 x 2,65 m.


Quer ver de perto a obra-prima de Manet? Ela está no Google Art Project em alta definição

Ou ainda, você pode visita-la pessoalmente na Galeria Impressionista, no 5º andar do Museu D’Orsay. 

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