A Rendeira

Johannes Vermeer
A Rendeira
© 2007 Musée du Louvre / Angéle Dequier 


Ela está a fazer seu trabalho em renda há anos. Provavelmente desde 1669 ou 1670. A jovem gentilmente se debruça sobre o trabalho e de tão concentrada nem percebe os espectadores que chegam para lhe ver. No inicio devo confessar que fiquei um pouco ofendida, pois atravessei um oceano para conhecê-la e ela lá, absorvida pelo trabalho. Ela mede 24,5 por 21 cm, e por isso precisamos chegar bem perto dela para vê-la, e ainda assim, quando nos aproximamos ela parece escapar. Sinceramente, tantas pessoas simpáticas nos outros quadros e essa moça aí, nem levanta os olhos do trabalho para nos cumprimentar, quem ela acha que é? Até a Monalisa com aquele sorriso indecifrável é mais receptiva que ela.

Essa jovem rendeira foi criada por Johannes Vermeer, um pintor que viveu no século XVII nos Países Baixos, na atual Holanda. Ele se inscrevia na tradição da Pintura de Interiores, que era um dos principais gêneros da época.

Nicolaes Maes
Mulher fazendo renda
1655
The Corporation of London, Mansion House,Londres 

Caspar Netscher
A Rendeira
1662
Wallace Collection, Londres

Porém, como todo grande artista, ele trazia todo um universo particular para as suas pinturas. Como no caso da nossa Rendeira, Vermeer aqui não fez apenas mais uma jovem de boa família realizando serviços manuais, não, Vermeer criou algo a mais, algo que nos parece tão indecifrável quanto à Monalisa. Essa distância inalcançável entre a jovem e nós, foi construída intencionalmente pelo artista.

Em um primeiro olhar, somos atraídos pela luz que sugere calma e tranqüilidade. Logo percebemos a jovem ao centro, concentrada em seu trabalho. Vermeer nos convida para a intimidade da cena através do tamanho reduzido do quadro, assim como através do enquadramento fechado, mas ao mesmo tempo em que ele parece nos convidar à cena, ele faz a intimidade da jovem inescrutável ao espectador. Notem como não vemos no que ela trabalha, não podemos ver aquilo que prende a atenção da jovem. Ora, não vemos nem mesmo a agulha em sua mão!


Notem como a mão esquerda dela não nos deixa ver o ser trabalho, e não nos permite ver a agulha, objeto essencial na feitura da renda. Vermeer habilmente criou uma pequena zona de sombras entre as mãos, e é para esse ponto que convergem as linhas de fuga da composição – as linhas que dirigem nosso olhar – e nesse ponto central primordial o artista posicionou o exato momento em que a jovem cria seu ponto de rendado! Porém, esse ponto não é mostrado ao espectador, pois está escondido pelas mãos da jovem.  Vermeer brinca com a nossa percepção.

Observem também como no primeiro plano Vermeer introduziu obstáculos ao nosso olhar: Temos uma peça de tapeçaria, uma almofada de costura, uma mesa, e atrás disso tudo, está finalmente a jovem.



Mas porque Vermeer joga tanto com a nossa percepção?

Segundo documentos mostram, o artista era muito interessado pela reprodução da realidade através de lentes. Ele era interessado pelo uso da Câmera Escura (Camara oscura), um aparelho ancestral da máquina fotográfica, que através de um jogo de lentes e reflexos, conseguia projetar a imagem “real” de um dado objeto ou ambiente em uma superfície. Ah, mas assim fica fácil pintar, não é? Copiando essas projeções? Bom, pode até ser que a tarefa seja facilitada e que no final a gente tenha uma pintura adequada, mas uma pintura de gênio como a de Vermeer? Duvido, pois a genialidade da pintura não está na sua reprodução fiel da realidade, “como se fosse uma fotografia”, mas a genialidade reside na construção da imagem.

A genialidade de Vermeer foi utilizar as percepções óticas para reiterar o tema do quadro. Vamos ver como ele fez isso: Em primeiro plano como vimos, existem alguns objetos que interferem no nosso olhar, notem o detalhe dos fios da almofada, notem como eles são pintados de maneira imprecisa, como se estivessem fora de foco. Notem como os detalhes da tapeçaria são sugeridos através apenas de pequenos pontos de cor pura, quase que pontilhismo.


Agora vamos comparar esses elementos com o fio central, aquele em que a jovem trabalha. Vejam como apesar de fino, ele é extremamente nítido.


Ora, Vermeer constrói em pintura a própria visão humana! Pois nosso olhar é formado por campos de visão, que variam em nitidez. O ponto onde nos concentramos está sempre em foco, nítido e claro, já as bordas variam em precisão. E no quadro o artista reserva a porção nítida e clara, para o trabalho da jovem. O centro de nossa atenção está no trabalho meticuloso representado com acuidade pelo frio branco da renda.  No entanto, tudo aquilo que está ao redor, perde em nitidez, e logo, perde em importância.


Mas como eu disse, Vermeer utiliza essas percepções óticas para reiterar o tema do quadro. No século XVII as imagens do trabalho manual representavam as Virtudes Femininas devido a uma interpretação dos Provérbios, onde lemos: “Quem achará uma mulher virtuosa? Pois o seu valor excede o dos rubis. (...) Ela busca lã e linho, e trabalha de boa vontade com suas mãos.”.  E sabemos o quanto a religião era um elemento fundamental da vida na época, tão importante quanto respirar. Logo, cultivar essas virtudes era imprescindível. A interpretação moral do quadro é reforçada pelo livro que está colocado na mesa da jovem, uma bíblia. A diligência com a qual a jovem trabalha é uma representação de suas virtudes como mulher. Nada a desvia de seu trabalho, nada a desvia do seu caminho em direção a Deus, nem mesmo as centenas de pessoas que vêm visitá-las todos os dias. 

Johannes Vermeer
A Rendeira
1669 - 1670 
Museu do Louvre – Paris
Óleo sobre tela – 24,5 x 21 cm


Quer conhecer a jovem rendeira? Ela está na ala Richelieu do Museu do Louvre, no 2º andar na sala 38.

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