Iconografia ou a História que a pintura conta.

Para ajudá-los a não mais temerem os museus, e até, vejam só: se divertirem, vou começar a falar sobre como “ler” um quadro.

Até o final do século XIX os quadros tinham um “assunto”: uma historia bíblica ou mitológica, um acontecimento histórico, um retrato, uma alegoria, etc. Aliás, era esse “assunto” que comandava como aquele quadro seria feito. Por exemplo, as cenas da Crucificação de Cristo têm quase sempre cores mais sóbrias, um horizonte que se faz noite (como está escrito na Bíblia); certos personagens que se repetem: Maria, o Apóstolo João, a Maria Madalena; alguns objetos como os instrumentos da paixão de Cristo; as expressões dos personagens são claras, variam da tristeza de Maria ao escárnio dos soldados romanos. Ou seja, quando os padres de uma Igreja do século XVI encomendavam um quadro de altar a um pintor famoso, eles esperariam que todos estes elementos estivessem presentes. Pois seria através desses elementos que os fiéis conseguiriam ler a cena. Pois bem, desde a época medieval a maioria da produção artística era voltada ao mercado religioso e logo, os pintores começaram a repetir elementos, como os instrumentos da paixão de Cristo, para dar legibilidade ao “assunto” que representavam. Mas com o passar do tempo esses elementos começaram a serem utilizados também para criar um nível de leitura mais sofisticado para atender o mercado crescente dos “homens de letras”. Alguns pintores como o italiano Giorgione ou o francês Nicolas Poussin criaram obras tão complexas em significados que até hoje acadêmicos estudam suas obras tentando “decifrá-las”.  

Continuam aí? Prometo que já fica mais interessante.

Para ilustrar esse tema escolhi um retrato de dois jovens franceses. – mas espera aí – um retrato tem “assunto”? – Sim. Um retrato bem feito sempre tem um assunto escondido. Pensem nisso nas próximas selfies.  – Esse retrato foi feito pelo pintor alemão Hans Holbein, o Jovem. Holbein era o pintor oficial do Rei Henrique VIII da Inglaterra (aquele das várias esposas e da série “Os Tudors”!). No quadro conhecido como “Os Embaixadores”, vemos o Embaixador Francês Jean de Dinteville e seu amigo o Bispo de Lavaur, Georges de Selve. Esse quadro foi uma encomenda de Dinteville que queria celebrar a visita do amigo à Inglaterra. À primeira vista esse é mais um retrato de “homens de letras”, com vários objetos que remetem ao conhecimento. Mas é aqui que a leitura de cada objeto nos permite entender realmente o “assunto” do quadro.

Hans Holbein, o jovem.
Jean de Dinteville e Georges de Selve (Os Embaixadores)


Vamos lá: Os dois homens estão ricamente vestidos, notem como Holbein soube criar a textura de cada peça de roupa: o cetim, a pele, o veludo. Na adaga do embaixador podemos ler a sua idade, 29 anos. No livro onde se apóia o Bispo está escrita a idade deste: 25 anos. Ambos jovens, ambos ricos, ambos  possuem grande cultura, é isso que esses detalhes nos contam. 
  




Na parte superior da estante vemos objetos de cálculos de astronomia e de medição do tempo, como um relógio solar, um globo com as constelações, já a parte inferior se refere às coisas terrenas: instrumentos de música, um livro de hinos religiosos, um livro de matemática e um globo terrestre... enfim, vários objetos que se referem à busca por conhecimentos e aos prazeres elevados tais como a música, correto? 



Mais ou menos, porque é aqui as coisas ficam mais interessantes. Notem o alaúde, notem que ele tem uma corda rompida. Firulas do pintor? Não. A corda rompida é um símbolo da desarmonia. Observem que o livro de hinos está colocado abaixo do alaúde e nele é possível ler os cânticos de Martinho Lutero, um dos líderes da Reforma.  Coincidência? Não. Holbein nos mostra aqui a dissonância religiosa da época. Esse quadro foi feito em 1533, em meio à agitação que levaria ao rompimento com a Igreja Católica e ao nascimento da Religião Protestante. O Embaixador da França, um país católico, está irrequieto com a situação na Inglaterra governada por um rei que está em sérios desacordos com o Papa. 




Mas o aspecto mais curioso desse quadro ainda está por vir. Observem a parte inferior do quadro, bem no centro... Mas o que seria isso? Bom, infelizmente como não estamos na National Gallery em Londres, vou logo mostrar para vocês:




Sim, uma caveira distorcida! Ou mais elegantemente falando, uma “anamorfose”. As caveiras sempre foram usadas em pinturas para nos lembrar da morte, existe até um gênero de pintura conhecido como “Vanitas”, naturezas mortas que servem para nos alertar sobre perigos do apego à vida terrestre. A chave para entender o porquê dessa caveira, é entender que só podemos vê-la de uma única posição. Somente quando estamos à direita do quadro percebemos a forma dela. Quando estamos observando de frente o quadro e todos os seus inúmeros detalhes, vemos apenas um borrão. Ou seja, ou vemos a caveira, ou vemos o restante do quadro. Não é possível ver os dois em totalidade ao mesmo tempo. E nesse pequeno detalhe Holbein nos mostra toda a sua genialidade: “a Morte”, Holbein nos diz, “é apenas uma ilusão”. A morte é apenas uma vaidade. Aquilo que realmente importa é a fé em Deus. E para confirmar isso Holbein nos coloca um detalhe quase escondido atrás da cortina, no canto esquerdo superior da pintura: um crucifixo. Esse sutil detalhe serve para alertar aos homens que apesar das disputas de religião, apesar da busca pelo conhecimento, todas as coisas terrenas irão passar, a morte virá para todos nós.



Hans Holbein, o jovem.
Jean de Dinteville e Georges de Selve (Os Embaixadores)
1533
National Gallery de Londres
Óleo sobre madeira 207 x 209.5 cm


Quer achar os Embaixadores na National Gallery em Londres? Eles te esperam na sala número 04. 


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